O RIO GRAVATA

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Gustavo Barroso
         Historiador e contista (1888 - 1959)
         Obras: Terra do Sol, Cinza do Tempo, etc.

Numa das vastas  e nuas salas do Liceu do Ceará, realizava-se naquela manhã luminosa de novembro o exame final de Geografia e Corografia do Brasil, presidido pelo simpático Prof. Teodorico. Os outros dois examinadores eram os Drs. Martins e Alboim. O primeiro, um velho doente e quase cego, que se dizia sempre satisfeito com o exame realizado e não interrogava ninguém. O segundo, gordo e baixote, surdo como uma porta, gostava, apesar da sua ignorância crassa, de fazer um pouco de figura à custa dos examinados
Sentado à frente dos três, pálido e medroso como um réu, prestava exame um rapazinho moreno, de pouco mais ou menos catorze anos, muito embaraçado, muito nervoso, respondendo com grande dificuldade às perguntas que lhe fazia o professor da cadeira sobre a primeira parte do ponto que lhe coubera por sorte: a bacia do Amazonas.
A muito custo o estudante conseguiu dizer onde nascia o rio-mar e qual o seu curso. O Prof. Teodorico mandou-o enumerar os afluentes do Amazonas pela margem direita.
    - O Javari, o Madeira... o Xingu... o Tapajós...
    - Bem. Agora tenha a bondade de dizer-nos alguns da margem esquerda.
O rapaz começou a coçar a cabeça, calado, suando frio, sem se lembrar de  mais nenhum afluente. As associações de ideias interrompidas pela superexcitação do sistema nervoso. O Prof. Teodorico, em tom afável, procurou auxiliá-lo.
    - Meu filho, perguntou bondosamente, qual é o rio que banha a cidade de Manaus, que não é o mais o mais importante, porém , o mais conhecido de todos os afluentes do Amazonas?
E com o dedo, fingindo distração, apontava significativamente a gravata de seda negra. O estudante, inteiramente atrapalhado, viu o gesto, mas não compreendeu nada e continuou a coçar a cabeça.
O rapaz, cada vez mais enleado, nada podia responder. Então, após alguns momentos de silêncio, o Alboim entrou em cena, dizendo com  ar doutoral:
    - Não é possível que o senhor não conheça o rio que banha Manaus, um rio tão conhecido. Portanto, diga logo, que a banca não pode perder tempo.
Vozes sopravam da assistência: o Negro! o Negro!
O professor semi cego cabeceava, cochilando. O Alboim, surdo, nada ouvia. O Teodorico sorria, tolerante, com  o dedo esquecido a apontar a gravata
     - Vamos, menino, diga qual é o rio, repetiu o Alboim, e os olhos não perdiam de vista, um minuto, o gesto do colega indicando a gravata. O moço respondeu:
     - Não me lembro.
Olhou de novo o gesto do colega, sorriu, tornou a indagar:
     - Então, não sabe qual o rio que banha Manaus?
Fez uma pausa, como a esperar a resposta, e, assumindo um ar de importância, concluiu:
     - Meu Deus, que ignorância! O rio que banha a capital do Amazonas é o Rio Gravata...

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