Podia ser algo inacreditável, se a marca não fosse alcançada pela arrogância, coação e a persistência brutal de um cartola que não admitia ver sua equipe de futebol (amador) ser derrotada.Para quem duvidar, garanto que a dramática história foi contada há alguns anos pelo radialista Reinaldo Moura, que mantinha um programa matinal com o seu próprio nome na rádio Cultura de Aracaju/SE. Se houver algum detalhe que não venha corresponder com o que nos foi revelado, peço desculpa, em razão do tempo passado.Assim como o famigerado IBOPE, o que sair aqui "para mais ou para menos", faz parte do potencial da memória, que graças ao bom pai eterno funciona às mil maravilhas. O que mais importa, acho eu, é que os fatos sejam relatados conforme o real conteúdo da narração. Prestem bem atenção porque não tive conhecimento até hoje da ocorrência de um caso igual ou semelhante, embora admito não ser impossível que venha a ter se registrado em alguma parte deste país continente.É porque no tempo do coronelismo nordestino nada era impossível. Era "cada um por si e Deus por todos", como dizia a velha crença popular do "manda quem pode e obedece quem tem juízo".
Pois foi assim mesmo. O coronel Antero, louco por futebol, e depois da fazenda, o time era o que mais lhe importava na vida. Mantinha a equipe unida. O elenco atuava bem no toque de bola,da defesa ao ataque. O meio campo, sempre formado no tradicional 4-4-2 inventado pelos grandes técnicos do futebol brasileiro, era a alma do famoso esquadrão, orgulho do coronel Antero, com Zeca, Segismundo, Maneco e Juvêncio. O coronel ficava de boca aberta com o jogo daqueles meninos sempre vencendo, perdendo nunca. O cartola batia no peito, dizendo: "aqui ninguém ganha de nós" e nesse ritmo já passava de vinte anos. Os atletas eram mantidos pelo coronel graças aos lucros do gado e da agricultura da fazenda. A moçada do coronel, como era mais conhecido o conjunto de jogadores, era famosa na região. Quando não havia jogo todo domingo, como acontecia no inverno, os craques atuavam de mês em mês. O importante é que a equipe não parasse de jogar. Os treinos eram realizados de terça à sexta-feira no campo da propriedade, à tarde.
Habituado de ver o seu clube sempre vencer contra todas as equipes das fazendas da região e de outros estados, o dono do clube quis inovar para fugir da rotina. Então, se valendo da data de aniversário, o coronel programou um jogo contra um adversário melhor e convidou um time baiano para um amistoso na sua fazenda, como de costume. Queria comemorar a data natalícia, ao lado da família e fazendeiros da área, celebrando mais uma vitória do seu esquadrão, se possível de goleada.
Era domingo de primavera, três da tarde. O campinho estava lotado. A torcida não pagava ingressos. Bandeiras tremulando. Público nervoso, agitado no vaivém da tarde empoeirada, tomava conta da área dedicada ao esporte na propriedade. Adversário de fora, juiz, idem. É que o fazendeiro e cartola preferiu um árbitro da capital para provar que sua equipe ganhava na raça, com garra e categoria, sem suborno e sem desonestidade. Antes do início da partida, o coronel Antero chamou de lado o juiz para dizer que queria um jogo limpo, sem violência. Recomendou aos jogadores que ganhassem como nas vezes anteriores. "Quero ganhar hoje de qualquer jeito, no sangue de guerreiro, no toque de bola, com valentia. Ganhem o jogo, sejam homens machos, durões!", recomendou.
O jogo se iniciou. Primeiro tempo,vinte minutos, zero a zero. Trinta e cinco minutos, zero a zero. A torcida do coronel, atendendo seu pedido, gritava, soltava bombas, chamava pelos nomes dos atletas, pedia gols e nada. Até que aos quarenta minutos da primeira fase o adversário abriu a contagem. Num lance bonito, bem trabalhado, Ferreirinha marcou. A torcida, com coronel, família, amigos e todo mundo, calou-se. Terminou o primeiro tempo.
O coronel, mais uma vez, conversou com jogadores e o técnico, pedindo vitória. "Temos de ganhar. Tratem de jogar. Vocês são homens ou são umas cachorras. Vamos vencer. Precisamos ganhar o jogo. Lutem com todas as forças"! Gritou, Antero, que pediu ao juiz, também, que apitasse certo, honestamente.
Começou a segunda etapa. Os atletas se estranharam.Começou a violência.Aí o árbitro meteu a mão no bolso e soltou cartão amarelo adoidado. A quase cada minuto, alguém recebia cartão, inclusive os goleiros. Meia hora de jogo, um a zero. A torcida se desesperava. Antero suava por todos os poros. Passava o lenço na cara a todo instante. A roupa estava molhada. Parecia que homem tomava banho.
Trinta e cinco minutos, segunda fase,um a zero para os baianos. Os ânimos esquentaram, Um tumulto estourou no meio do campo. O pau quebrou! Foi soco, botinada, pontapé para todo lado. A torcida perdeu a paciência com a perda da invencibilidade do time do fazendeiro. Os torcedores também se atracaram. O jogo virou uma batalha. Dez minutos depois havia gente ferida fora do campo. Os briguentos se armaram de pedras, paus, faca-peixeira durante o conflito. O árbitro expulsou seis jogadores, aplicou 80 cartões amarelos e seis vermelhos. Cada time terminou o jogo com três jogadores a menos.Duzentas pessoas deixaram o campo banhadas em sangue. Ninguém morreu. Ao término da partida, o juiz chamou os dirigentes dos dois times e parabenizou o coronel pelo aniversário e pela vitória de 1 a 0, o que mantinha o time invicto na história do futebol local.
Nenhum comentário:
Postar um comentário